Às Vezes Um Deus Selvagem...


Às vezes um deus selvagem chega à mesa.
Ele é estranho e não conhece as artes da porcelana,
Dos talheres, da mostarda e da prata.
Sua voz transforma o vinho em vinagre.

Quando o deus selvagem chegar à porta,
Você provavelmente vai temê-lo.
Ele lembra algo escuro
Com que você talvez tenha sonhado,
Ou o segredo que você não quer compartilhar.

Ele não toca a campainha;
Em vez disso, raspa a porta com os dedos,
Manchando a tinta de sangue,
Embora as prímulas cresçam em círculos ao redor de seus pés.

Você não quer deixá-lo entrar.
Você está muito ocupado.
É tarde, ou cedo, e, além disso,
Você não consegue olhar de frente para ele
Porque ele o faz querer chorar.

Seu cachorro late; 
O deus selvagem sorri.
Estende a mão,
E o cão lambe suas feridas.
Depois o leva para dentro.

O deus selvagem está de pé em sua cozinha.
A hera tomou conta de seu aparador,
O visco se instalou nos abajures, 
E as carriças começaram a cantar
Uma canção antiga no bico de sua chaleira.

“Não tenho muito”, você diz, 
E lhe dá o que há de pior em sua comida.
Ele se senta à mesa, sangrando, 
Tosse raposas.
Há lontras em seus olhos.

Quando sua esposa chama lá de cima,
Você fecha a porta 
E diz que está tudo bem.
Você não vai deixar que ela veja
O estranho hóspede à sua mesa.

O deus selvagem pede whiskey
E você lhe serve um copo,
Depois serve outro para si mesmo.
Três cobras começam a fazer ninho
Em sua laringe. Você tosse.

Ó, espaço infinito!
Ó, mistério eterno!
Ó, infindáveis ciclos de morte e nascimento!
Ó, milagre da vida!
Ó, assombrosa dança disso tudo!

Você tosse novamente,
Cospe as cobras
E dilui o whiskey, 
Enquanto se pergunta como envelheceu tanto
E onde foi sua paixão.

O deus selvagem enfia a mão numa bolsa
Feita de pele de toupeira e rouxinol.
Tira dela uma flauta de bambus,
Ergue uma sobrancelha
E todos os pássaros começam a cantar.

A raposa pula para dentro de seus olhos.
As lontras correm da escuridão.
As cobras se espalham por seu corpo.
Seu cachorro uiva e, no andar de cima,
Sua mulher se alegra e chora ao mesmo tempo.

O deus selvagem dança com seu cachorro.
Você dança com os pardais.
Um veado branco puxa um banco
E muge, entoando hinos para encantamentos.
Um pelicano pula de cadeira em cadeira.

À distância, guerreiros pulam de seus túmulos; 
O ouro antigo cresce como grama nos campos.
Todos sonham com as letras de canções há muito esquecidas.
As colinas ecoam e as pedras cinzentas soam
Com risadas, loucura e dor.

No meio da dança,
A casa se eleva do chão.
As nuvens entram pelas janelas;
O raio atinge a mesa com força
E a lua se inclina para dentro.

O deus selvagem aponta em sua direção.
Você sangra muito.
Você sangra há muito tempo,
Talvez desde que nasceu.
Há um urso na ferida.

“Por que você me deixou morrer?”
Pergunta o deus selvagem e você diz,
“Eu estava ocupado sobrevivendo.
As lojas estavam todas fechadas;
Eu não sabia como. Sinto muito.”

Escute-os:
A raposa em seu pescoço 
E as cobras em seus braços,
A carriça e o pardal
E o veado ...
As grandes bestas inomináveis
Em seu fígado e seus rins e seu coração ...

Há uma sinfonia de uivos.
Uma cacofonia de conflitos.
O deus selvagem balança sua cabeça e
Você acorda no chão
Segurando uma faca,
Uma garrafa e um punhado de pelo preto na mão.

Seu cachorro dorme na mesa.
Sua esposa se agita lá em cima.
Lágrimas lhe correm pela face;
Sua boca dói de rir e gritar.
Um urso negro está sentado junto ao fogo.

Às vezes um deus selvagem chega à mesa.
Ele é estranho e não conhece as artes da porcelana,
Dos talheres, da mostarda e da prata.
Sua voz transforma o vinho em vinagre
E ele traz os mortos de volta à vida.

Autor: Tom Hirons
Tradução: Lourdinha Heredia


4 comentários:

  1. Oi, Cristiane!
    Já tive a oportunidade de ler anteriormente esse poema pagão. Um Deus selvagem é sempre chamado a despertar em tempos difíceis para recuperar a jornada que está em risco. Instigante pois confronta o leitor com a desconexão que existe nos dias atuais entre nós e a Natureza.
    Beijus,

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  2. OI Cris,
    Que texto incrível. Me deu medo!!!
    Beijos

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  3. Maravilhoso, Cris! Por que você me deixou morrer? Eu estava ocupado...mas ele volta...E mais uma vez, uma chance ele te dá...

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